sábado, 5 de maio de 2012

Borges para acordar

Compreendeu que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que os sonhos são feitos é o mais árduo que um varão pode empreender, embora penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou que amoldar o vento sem rosto. Compreendeu que um fracasso inicial era inevitável. Jurou esquecer a enorme alucinação que a princípio o desviara e buscou outro método de trabalho. Antes de exercitá-lo, dedicou um mês à reposição das forças que o delírio desperdiçara. Abandonou toda  premeditação de sonhar e quase ato contínuo conseguiu dormir um pedaço razoável do dia. As raras vezes que sonhou durante esse período, não reparou nos sonhos. Para reatar a tarefa, esperou que o disco da lua ficasse perfeito. Em seguida, à tarde purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e adormeceu. Quase imediatamente, sonhou com um coração que palpitava. 




[Borges, Jorge Luis. Ficções. SP: Cia das Letras, 2007.
trecho do conto "As ruínas circulares"]

Caeiro, o filósofo

XLVII
 

Num dia excessivamente nítido,
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.

Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas idéias.

A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam.

Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.




[Pessoa, Fernando. Alberto Caeiro: poemas completos. SP: Nobel, 2008.]

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A "viagem" de Vincent Degraël [G. Perec]

(...).
A segunda parte constituía, sozinha, quase quatro quintos do livro, e parecia desde logo que o curto relato que o precedia não passava de um pretexto anedótico. Era uma longa confissão de lirismo exacerbado, entremeada de poemas, máximas enigmáticas, sortilégios blasfematórios. Mal começou a ler a ler, Vincent Degraël teve uma sensação de mal-estar que lhe foi impossível definir com precisão, mas que se acentuava à medida que virava as páginas do volume, com a mão cada vez mais trêmula: era como se as frases que tinha diante dos olhos se tornassem chofre familiares, fazendo-o irresistivelmente lembrar alguma coisa, como se à leitura de cada uma delas se impusesse, ou antes superpusesse, a lembrança ao mesmo tempo precisa e frouxa de uma frase quase idêntica que ele já lera em algum lugar; como se aquelas palavras, mais ternas que carícias ou mais pérfidas que venenosas, fascinantes, labirínticas, oscilando sem parar, como a agulha desvairada de uma bússola, entre uma violência alucinada e uma serenidade fabulosa, desenhassem uma configuração confusa na qual se podia ver confundidos Germain Nouveau e Trisan Corbière, Villiers e Banville, Rimbaud e Verhaeren, Charles Cros e Léon Bloy.

Vincent Degraël, cujo campo de interesses incidia precisamente sobre tais autores, julgou a princípio que talvez já tivesse lido o livro ao acaso das pesquisas; depois, com maior verossimilhança, que talvez fosse vítima de uma ilusão de déja vu, pela qual - assim como o simples sabor de um gole de chá nos transporta de repente à Inglaterra de trinta anos atrás - bastava um nada, um som, um odor, um gesto - talvez esse instante de hesitação que sentira antes de retirar o livro da estante, onde estava classificado entre Verhaeren e Vielé-Griffin, ou ainda a maneira ávida com que percorrera as primeiras páginas - para que a lembrança falaciosa de uma leitura anterior viesse sobrepor-se a ela, perturbando-a até tornar impossível a leitura que estava a ponto de fazer. Mas logo a dúvida não pôde sustentar-se e Degraël teve de se render à evidência: talvez a memória lhe pregasse uma peça, talvez não passasse de um acaso que Vernier parecesse tomar emprestado a Catulle Mendès o seu "solitário chacal assediando os sepulcros de pedra"; talvez pudesse levar em conta os encontros fortuitos, as influências ostensivas, as homenagens voluntárias, as cópias inconscientes, a vontade de pastiche, o gosto das citações, as coincidências felizes, talvez pudesse considerar que expressões como "o vôo do tempo", "névoas do inverno", "obscuro horizonte", "grutas profundas", "fluidas fontes", "incertos clarões das macegas selvagens" pertencessem de pleno direito a todos os poetas e que era perfeitamente normal encontrá-las num parágrafo de Hugo Vernier ou nas estâncias de Jean Moréas, mas era de todo impossível não reconhecer, ao sabor da leitura, palavra por palavra ou quase, aqui um fragmento de Rimbaud ("Via honestamente uma mesquita no lugar de uma fábrica, uma escolta de tambores formada por anjos") ou de Mallarmé ("inverno lúcido, estação de arte serena"), ali um Lautréamont ("Vi no espelho esta boca machucada pela minha própria vontade") ou de Gustave Kahn ("Deixa expirar minha canção... a alma chora./ Rasteja um bistre em torno à claridade./ O silêncio subiu lentamente, apavora/ Os ruídos habituais da íntima vacuidade"), ou, mal modificado, um Verlaine ("no tédio interminável da planície, luzia a neve como fosse areia. O céu era da cor do cobre. O trem deslizava sem um só murmúrio...") etc.

Eram quatro horas da manhã quando Vincent Degraël terminou a leitura de Viagem de inverno. Havia localizado cerca de trinta empréstimos. Certamente haveria outros. O livro de Hugo Vernier parecia uma prodigiosa compilação dos poetas do fim do século XIX, um centão desmensurado, um mosaico em que quase todas as peças eram obra de outrem. Mas no exato momento em que se esforçava por imaginar esse autor desconhecido que decidira extrair de livros alheios a própria matéria de seu texto, quando tentava figurar até o fim esse projeto insensato e admirável, Degraël sentiu nascer em seu íntimo uma suspeita assustadora: acabava de lembrar que, ao tomar o livro da estante, havia maquinalmente observado a data, movido por esse reflexo de jovem pesquisador que jamais consulta uma obra sem atentar para os dados bibliográficos. Talvez se tivesse enganado, mas achava que havia lido "1864". Verificou a data, o coração batendo. Lera corretamente: isso queria dizer que Vernier havia "citado" um verso de Mallarmé com dois anos de antecipação, plagiado Verlaine dez anos antes de suas "Pequenas árias esquecidas", escrito versos de Gustave Kahn cerca de um quarto de século antes dele! Isso queria dizer que Lautréamont, Germain Nouveau, Rimbaud, Corbière e outros mais não passavam de copistas de um poeta genial e desconhecido que, numa obra única, soubera recolher a própria susbtância de que se nutririam em seguida três ou quatro gerações de autores!       
(...).



[trecho do conto "A viagem de inverno" - PEREC, Georges.  
A coleção particular. SP: Cosac Naify, 2005.]

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O nome dele é Pedro [ellacarlinha]

Descobri a música e a poesia de Pedro Veríssimo. Sim. Filho de Luis Fernando, neto de Érico. A vontade que eu tenho é de colocar aqui todas as músicas do novo álbum solo do rapaz. Mas não seria completo. A página dele está lá, para quem quiser entrar. Aqui vai a dica:   http://pedroverissimo.com.br/

Para quem ainda não conhece eu diria que o nome dele é Pedro, compositor com um texto poético e direto, lindo. As músicas são cantadas pelo próprio, cuja voz lembra-me, em alguns momentos, a de Renato Russo. Mas a vibe é outra - única, como em toda obra de arte. São músicas que provocam uma dor e uma delícia raras de encontrar.

Não posso dizer que me "apaixonei" - porque a emoção não é violenta nem incômoda. Posso dizer que "amei" - emoção terna, respeitosa, espiritual (no sentido filosófico da coisa). Sim. Amor-philía. (uau!).


A palavra dos outros  é muitas vezes a minha palavra - o que eu escreveria/diria/pensaria, se houvesse me ocorrido. Com as palavras desse artista foi assim. Então, se tu me leste até aqui, clica no link acima e vai descobir Pedro.   

Anda-te!



[à propósito, minhas palavras em http://incoseaquilos.blogspot.com/]